
Por Lygia Zamali Fernandes (pesquisadora e membro/a de uma comunidade da Floresta) com colaboração de Edson Krenak, CS Staff
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) do Brasil determinou há dias a suspensão do acordo "Moratória da Soja". Assinado em 2006, trata-se de um acordo e um recurso para proteger a floresta amazônica e impedir que comerciantes de soja comprem produtos de áreas desmatadas da Amazônia e do Cerrado. Defendida por ambientalistas, Povos Indígenas e comunidades tradicionais, a moratória é um mecanismo importante que exige responsabilização e punição para empresas que violam o acordo.
Por exemplo, a gigante agrícola Cargill entrou com uma ação judicial contra a ClientEarth por violar as regras da moratória. Qualquer pessoa familiarizada com os povos Xavante, Munduruku ou Quilombolas, sabe que, entre muitos outros povos, seus territórios são cercados e profundamente impactados pelo plantio agressivo da monocultura da soja perto de suas terras. O Brasil é o maior exportador mundial de soja, e o rápido crescimento do setor, liderado pela Cargill e pela Bunge, está impulsionando a destruição ambiental de ecossistemas vulneráveis e uma acelerada violação dos direitos de Povos Indígenas, Quilombolas e comunidades tradicionais da floresta Amazônica e dos Cerrado. Na foto 1, se vê a estrada que leva a terra indigena Xavante no Mato Grosso, no fundo, se vê uma instalação da Cargill e do outro lado a direita o resto de floresta na entrada do território Xavante.
A Amazônia brasileira não é apenas um campo de batalha; é o coração de uma guerra global pelo futuro do nosso planeta. De um lado, estão as forças hegemônicas do agronegócio, apoiadas pelo capital internacional e por um modelo de desenvolvimento que prioriza o lucro em detrimento das pessoas. Do outro, estão os Povos Indígenas e as comunidades tradicionais, defendendo não apenas seus lares, mas também uma visão de cidadania enraizada na própria vida da floresta. Esta é uma luta entre extração e existência, entre paradigmas coloniais e futuros emancipatórios.
Esta análise, elaborada a partir de minha pesquisa, vai além da mera observação científica para defender a mobilização estratégica dessas comunidades da linha de frente, das quais faço parte. Exploro duas frentes poderosas nessa luta: a vitória estratégica da Moratória da Soja e o conceito revolucionário de "Florestânia" – uma releitura radical da cidadania que oferece um verdadeiro caminho para sair de nossas crises sistêmicas.
A Moratória da Soja: um escudo Frágil em uma guerra Corporativa
No início dos anos 2000, gigantes do agronegócio devastaram a Amazônia, transformando vastas áreas de floresta tropical insubstituível em monoculturas de soja para exportação global. A Moratória da Soja de 2006 surgiu não como um presente das corporações, mas como uma concessão arduamente conquistada, forçada pela pressão implacável de movimentos populares e pela indignação internacional.
Este acordo foi um primeiro passo crucial, provando que a destruição corporativa pode ser contida. Mostrou ao mundo que a indústria da soja estava conscientemente financiando o desmatamento. No entanto, devemos ser claros: a Moratória sempre foi um escudo frágil, não uma solução. Sua eficácia é deliberadamente prejudicada por lacunas estruturais, fiscalização frouxa e um mercado informal próspero. Este episódio expõe a incapacidade fatal de soluções baseadas no mercado e agências de desenvolvimento para abordar as causas profundas. Não podemos negociar com a própria lógica que cria a crise; devemos desafiá-la abertamente.
Florestania: A Visão Radical da Cidadania Florestal
Enquanto a Moratória atua dentro do sistema, a "Florestania" (cidadania florestal) busca transformá-lo completamente. Defendida pelo líder visionário Ailton Krenak e enraizada no que o acadêmico Walter Mignolo chama de "desobediência epistêmica", Florestania é uma rejeição direta aos modelos ocidentais de cidadania urbanocêntrica. É um projeto político nascido na Amazônia, que afirma que o verdadeiro pertencimento é definido por uma relação simbiótica com a floresta, não por um passaporte ou uma identidade de consumo.
Florestania não é apenas resistência; é um projeto de libertação. Ela exige:
- Controle Territorial Coletivo: O fim da invasão do agronegócio e da mineração. A terra não é uma mercadoria; é um parente vivo.
- Sociabilidades Alternativas: O direito de coexistir, combinando costumes tradicionais atemporais com o conhecimento moderno em seus próprios termos.
- Sustentabilidade Ancestral como Padrão: Tecnologias e conhecimentos indígenas não são alternativas; são o modelo essencial para a solução de crises ambientais globais.
A Moratória sob ataque
A natureza precária dos acordos liderados pelo mercado está agora em plena evidência. A própria Moratória da Soja – uma medida protetiva mínima – está ativamente sob ameaça por setores do agronegócio e seus aliados políticos, que cinicamente clamam por "excesso de regulamentação" enquanto pressionam por sua extinção.
Isso não é um exercício. É uma ação deliberada para desencadear uma nova onda de destruição sob um disfarce ainda mais frágil de sustentabilidade. Este momento soa o alarme: acordos plácidos com poderes corporativos estão fadados ao fracasso. As únicas soluções duradouras são aquelas enraizadas nas alternativas radicais já praticadas pelas comunidades da floresta Povos Indígenas, Quilombolas e tradicionais.
O caminho a seguir não é implorar por compromissos mais fracos, mas lutar por futuros mais fortes. A Amazônia exige mais do que medidas paliativas; exige um novo paradigma onde a Florestania seja a base. Um paradigma onde a justiça socioecológica e uma existência digna sejam inegociáveis.
O tempo da observação neutra acabou. A luta das comunidades amazônicas é a nossa luta. Devemos apoiá-las, amplificar suas vozes, apoiar seus movimentos e rejeitar as falsas soluções oferecidas por seus opressores. O futuro da floresta — e, por extensão, o nosso — depende da coragem de abraçar essa revolução epistêmica.